Depois do clima, é a vez da natureza entrar nos balanços

Força tarefa cria padrão de reporte de riscos e oportunidades criados para os negócios por recursos hídricos, biodiversidade e outros 

Por Sérgio Teixeira Jr.

 

Por iniciativa voluntária ou obrigação regulatória, grandes empresas do mundo todo estão aprendendo a medir e divulgar como a mudança climática afeta seus negócios.

Anos de desenvolvimento culminaram no ISSB, um padrão de reportes  climáticos para o setor financeiro que a CVM, o xerife do mercado de capitais brasileiro, adotou de forma pioneira há dez dias.

Mas os efeitos dos gases de efeito estufa não são o único fator de risco para os negócios. Um novo padrão de reporte, lançado há um mês e meio, quer colocar a natureza e a biodiversidade nos balanços corporativos, assim como o que vem acontecendo com o clima.

O objetivo da Task force on Nature-related Financial Disclosures (TNFD) é entender como os riscos e oportunidades relacionados à natureza podem afetar o negócio das empresas – e orientar as decisões dos investidores.

“A natureza já está nos avisando com muita urgência. Perda da biodiversidade, contaminações, espécies invasoras… Estamos ultrapassando os limites planetários”, diz ao Reset o colombiano Felipe Arango, que lidera os projetos-piloto da iniciativa.

No caso do clima, tudo pode ser reduzido ao denominador comum das toneladas de CO2 equivalente. Um dos desafios da natureza é a imensidão do universo a ser medido.

Arango diz que a força-tarefa identificou mais de 3 mil possíveis indicadores. No final, foram eleitas 14 métricas.

A parte difícil começa agora: convencer as companhias e reguladores a adotar as normas. Apesar da importância do tema – metade do PIB global depende de alguma forma de recursos naturais, segundo o Fórum Econômico Mundial –, o assunto é novo e se soma à já complexa tarefa de compreender como a mudança climática vai transformar os negócios.  

O órgão regulador – batizado de Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, ou SBCE – fica responsável por determinar os setores da economia sujeitos a tetos de emissões e por conceder (ou vender em leilões) permissões de emissão às empresas.

Arango afirma que é necessário “abraçar a complexidade”. “É do interesse do setor corporativo e do setor financeiro jogar luz sobre suas dependências da natureza para analisar o quanto antes que capacidades, que planos existem. Porque os riscos e as oportunidades estão aí.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Arango em uma recente passagem por São Paulo.

Qual é o objetivo do TNFD?

O propósito principal é o reconhecimento de que os fluxos financeiros podem gerar resultados positivos ou negativos para a natureza. E ela já está nos avisando com muita urgência. Perda da biodiversidade, contaminações, espécies invasoras… Estamos ultrapassando os limites planetários.

Os fluxos financeiros podem ser grande parte da solução ou acelerar o problema. A TNFD considerou que era necessário um marco global que permitisse dirigir [o capital] para afastá-lo dos resultados negativos e aproximá-lo dos positivos.

Para isso era necessário criar uma linguagem comum, uma série de definições, sobre o que é impacto na natureza, ou que é dependência, quais são os riscos ou as oportunidades associadas a ela e assim por diante.

Diria que no coração da TNFD estão as divulgações corporativas. Mas é um tipo diferente de divulgação, no sentido de que ela está focada nos supervisores financeiros, nos bancos centrais. Eles é que vão exigir do setor financeiro transparência sobre os riscos e as oportunidades relacionadas à natureza que ele financia.

É algo análogo à TCFD (Task force on Climate-related Disclosures), que fez o mesmo para o clima.

Sim, e aprendemos muito com eles, pois já existem legislações e regulamentações financeiras baseadas no trabalho da TCFD. Estamos conversando também com a IFRS e o ISSB, e eles já anunciaram publicamente que vão levar em conta o nosso trabalho.

Então, supervisores e os bancos centrais podem dar um passo além dos relatórios voluntários. Uma das coisas que me entusiasmam na TNFD é esse potencial de modificar a supervisão e modificar a contabilidade.

A TCFD já introduziu uma camada de complexidade de levantamento de informações que as empresas têm de divulgar. Agora vem algo potencialmente ainda mais complicado para as empresas. Isso não representa um risco para o sucesso do padrão?

Sempre acreditei que o exercício de relatar e o aprimoramento da gestão são duas faces da mesma moeda.

É do interesse do setor corporativo e do setor financeiro jogar luz sobre suas dependências da natureza, como uma lanterna, para analisar o quanto antes que capacidades, que planos existem. Porque os riscos e as oportunidades estão aí.

Tem os riscos físicos da natureza, que vão mudar as preferências dos consumidores para proteger a única casa que temos. E a legislação será cada vez mais exigente. Já estamos vendo isso na Europa.

O exercício de reportar deve ser visto com a lente de aprimorar a gestão, identificar brechas e desenvolver planos para avançar e proteger sua criação de valor.

E qual é a expectativa de que essas divulgações sobre impactos da natureza sobre os negócios também se tornem obrigatórias, como tem acontecido com os reportes climáticos?

Cada jurisdição, assim como no caso do TCFD, vai definir com seus processos políticos próprios. Desenvolvemos o padrão para que possa ser utilizado de maneira voluntária.

Temos visto o interesse de várias delas agora que começa a fase de adoção, aproveitando o ímpeto gerado pela COP15 [a COP da Biodiversidade] e pela Meta 15 do Marco Global de Biodiversidade.

[A Meta 15 do “Acordo de Paris para a Biodiversidade” prevê que os 196 países signatários do documento incentivem instituições financeiras e empresas, especialmente as de grande porte e multinacionais, a reportar seus riscos, dependências e impactos na biodiversidade.

Algumas jurisdições já manifestaram interesse em ser pioneiras, em estabelecer obrigatoriedade, e outras vão começar com reportes voluntários.

Não posso mencionar exatamente quais, porque estão em fase de pilotos, mas alguns bancos centrais já estão aplicando a TNFD para seus próprios investimentos. Então, acho que essa bola de neve vai começar.

No clima tudo é reduzido a uma única unidade, que são as toneladas de carbono equivalente. Quais são os indicadores para a natureza?

A natureza é complexa por definição. A interação entre os diferentes âmbitos da natureza é complexa. A atmosfera, os oceanos, o sol, o solo saudável, a água fresca, tudo está interagindo permanentemente em um sistema cheio de complexidades, cheio de interações, cheio de ciclos de retroalimentação.

Se a gente quer ter resultados positivos com a natureza, tem que abraçar essa complexidade. Ou seja, isso não pode ser um incentivo para a paralisia. Tentamos simplificar da melhor maneira possível, mas reconhecendo que a complexidade vai existir.

Identificamos mais de 3 mil métricas. Nas recomendações finais, chegamos a 14 métricas.

São métricas muito alinhadas aos motores das mudanças na natureza, como mudança do uso da terra [desmatamento para abrir novas áreas de plantação], extração de recursos naturais, contaminação etc. E também temos métricas relacionadas aos riscos e às oportunidades relacionadas com a natureza.

São indicadores core que se aplicam à maioria das empresas e que podem ser considerados pelo setor financeiro na hora de analisar as atividades que financia. São dados que podem ser relevantes para a história que os portfólios vão contar.

E como podemos compará-los, já que muitos deles estão associados a regiões específicas?

Sim. Uma tonelada de dióxido de carbono na Índia é igual a uma tonelada de dióxido de carbono na Colômbia. Elas vão para a mesma atmosfera.

Mas a extração de água de um reservatório em São Paulo é muito diferente da extração de água de um reservatório na Cidade do Cabo. Neste caso, você precisa levar em conta os diferentes níveis de estresse hídrico de cada região.

Não estamos procurando uma bala de prata. O importante é como as empresas contam a história em sua governança, em sua estratégia, em seus sistemas de gestão, em suas métricas e objetivos.

Para que seu negócio continue gerando valor para a sociedade, para os acionistas e para os stakeholders, você precisa entender essa complexidade, tem que administrá-la.

Mas com um indicador único do clima, a tonelada de carbono, o setor financeiro ainda faz pouco. É só olhar para o financiamento de combustíveis fósseis…

É um bom ponto. Mas a mudança depende de outras dinâmicas além do número de métricas e da complexidade.

Tem a aceleração de mudanças nas preferências dos consumidores, e não só nos produtos e serviços que eles consomem. Os fundos de pensão investem o dinheiro dessas pessoas.

Não acho que o setor financeiro não tenha avançado suficientemente rápido na transição energética pelo número de indicadores ou a complexidade. Temos subsídios governamentais também.

Tenho certeza de que, mesmo com a complexidade, podemos abordar água fresca, solo, oceano e atmosfera de uma forma integrada e para que cada empresa possa contar sua história e transformar seu modelo de negócio. E que a sociedade possa tomar melhores decisões de investimento e de consumo.

A TNFD fez alguns projetos-piloto. Você poderia dar um exemplo do que o padrão representa na prática?

Fizemos 250 pilotos em todas as geografias, incluindo empreendimentos indígenas no México. Vou falar de um exemplo do setor financeiro e outro de empresa.

Um piloto muito interessante foi num fundo de pensão público na Escandinávia, que começou a fazer o exercício para entender como eles estão gerenciando riscos e oportunidades relacionados à natureza.

Eles dividiram o portfólio por assuntos e o examinaram com uma lupa. Quais das empresas têm risco associado ao desmatamento? E de contaminação de plásticos?

A partir daí começaram a ter outro tipo de conversa com essas empresas.

No setor corporativo, uma grande farmacêutica fez todo o exercício de aplicação da nossa metodologia e vai passar a publicar de forma integrada seus relatórios TCFD [clima] e TNFD [natureza].

Eles descobriram que o risco de natureza era maior que o climático, por causa da ameaça de colapso de ecossistemas e da eventual perda de licença para operar em comunidades de cujos insumos a companhia depende.

Podemos enxergar no futuro um único padrão que inclua clima e natureza?

Sim. Não vamos chegar ao net zero sem soluções baseadas na natureza, sem acabar com o desmatamento. A máquina mais poderosa que temos de eliminação de gases de efeito estufa hoje é a natureza.

A Terra é um sistema único. E nas empresas a governança também será a mesma. Se você tiver um fornecedor de alimentos, não vai querer saber só que tipo de energia ele usa, mas se ele desmatou, que fertilizantes usa, como está a saúde do solo.

Ninguém desenvolve um novo produto para o clima e outro para a natureza. A integração é natural.

Como vou ganhar o mesmo dinheiro dependendo menos da natureza? Como faço com mais circularidade? Como substituo certos insumos? É um olhar muito mais holístico e muito mais profundo, que vai ao coração do modelo de negócio.

Por mais que seja tudo interdependente, a crise climática parece dominar todas as atenções. Isso é um motivo de preocupação?

Talvez por ser mais fácil medir o consumo de energia, gases de efeito estufa e métricas de equivalência de CO2, o clima foi o primeiro a se priorizar.

Mas isso é positivo, não uma preocupação. Estamos aproveitando o que já se construiu ao longo dos últimos anos. E a natureza está no centro das atenções, vimos isso na recente Semana do Clima, em Nova York (realizada em setembro).

O Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, e acesso a vastos recursos naturais. Os reportes de natureza parecem uma grande oportunidade para as empresas daqui, não?

Sem dúvida. Existe uma enorme oportunidade para países mega biodiversos como o Brasil ou a Colômbia. É o nosso principal ativo e onde temos um diferencial competitivo em comparação com o resto do mundo.

O capital natural é a oportunidade para que os modelos de negócio e o setor financeiro do Brasil estejam um passo à frente. Transparência e evolução na gestão vão proteger esse capital natural.

E você vai poder atrair o capital financeiro internacional. Eu poderia te mostrar todos os fundos de pensão, fundos soberanos, grandes investidores que se comprometeram a gerar resultados positivos para a natureza.

As empresas que podem mostrar esses resultados de conservação, de regeneração ou de modelos de negócio positivos para a natureza estão em nossos países.

Não se trata mais de fluxos financeiros interessados em mão-de-obra mais barata. Agora podemos competir cuidando do nosso principal ativo.

Fonte: https://capitalreset.uol.com.br/regulacao/depois-do-clima-e-a-vez-da-natureza-entrar-nos-balancos/?utm_campaign=31102023_-_tnfd__engie_unipar&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

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